terça-feira, 23 de março de 2010

Se me puderes ouvir



O poder ainda puro das tuas mãos
é mesmo agora o que mais me comove
descobrem devagar um destino que passa
e não passa por aqui

à mesa do café trocamos palavras
que trazem harmonias
tantas vezes negadas:
aquilo que nem ao vento sequer
segredamos

mas se hoje me puderes ouvir
recomeça, medita numa viagem longa
ou num amor
talvez o mais belo

poema: José Tolentino Mendonça

sábado, 20 de março de 2010

quinta-feira, 18 de março de 2010

De um sonho



Uma casa que sonha com o mar
tem a luz que está a ser sonhada.
Nela, os habitantes vivem e morrem,
ouvindo só o som do mar distante.
Porém um dia, os habitantes saem
para o mar. A casa acorda
e não mais se recorda do seu sonho,
deixando entrar outro sol da realidade.

poema: Fiama Hasse Pais Brandão
fotografia: *DaJe

terça-feira, 16 de março de 2010

Álbum de Família



Voam as andorinhas, é Verão. Voam libélulas, tão transparentes como a palavra libélula, voam rente ao ribeiro sem se molharem, são férias. Voa o vento, voa a a música, voa o anjo, voa o grito desde o alto da montanha até à outra montanha e constrói uma ponte por cima do vale, voa a luz de Agosto através das folhas das árvores (e faz manchas claras no chão), e eu...
E eu, que não conheces pelo nome, eu também voo em sonhos. Descolo da terra na vertical, como um helicóptero, depois continuo um pouco inclinado e no alto, à esquerda, aparece o dia a madrugar e à direita, em baixo, está a noite noitíssima, e eu sempre a subir, tal qual uma nave espacial, para o azul do meio, entre o sol e a lua, enquanto a terra se afasta, diminui, fica pequena, uma ervilha. Quem não sonha e não voa não é teu amigo.

Queres voar comigo?

texto: Jorge Listopad

Princesa Desconhecida sem retrato


a Sophia de Mello Breyner

O custo da perfeição não tem idade

mas traz cansaço e vidas dobradas,

dizes,

para o tornozelo e o pescoço esguio

não foram sete dias, foram séculos

de história e um estilhaço no horizonte

para salvar da beleza o teu corpo

e o seu exílio, dizes,

e eu escrevo nas ondas com que criaste o mar,

a forma pura e límpida da búzio

por onde entram fadas, conchas ao entardecer.

Mas a princesa mora para lá do tempo

onde o ar é imóvel nos seus cabelos,

dizes

quantos escravos moldaram rosto a rosto

a simplicidade, quanto inútil for a morte

e a vida ajoelhada. Não fosse o mar

salpicar-te a face toda com palavras

não dirias pátria de voz cheia,

não terias acordado com um beijo de cravo

na lapela aberta do poema.



poema: Rosa Alice Branco
fotografia: Daniel Camacho

domingo, 14 de março de 2010




As mulheres são os lugares recuados

em que as mãos descobrem os filhos.

São lugares fundos, luminosos por dentro,

habitados por extensões espirituais,

porções parasitárias de semelhança

que se mantêm amarradas por ataduras

viscerais e que um dia, violentamente,

são entregues à luz.


poema: José Rui Teixeira

escultura: Karin Somers

Alice in wonderland




- Será que estou louca?
- Estás louca, desvairada, fora de ti. Mas sabes uma coisa? Todas as pessoas boas são loucas.

Alice in the Wonderland, Tim Burton

sábado, 13 de março de 2010



E se não escrever o teu nome
como direi a alegria ao mundo?

poema [excerto]: Daniel Faria
ilustração: rachel caiano

My Brightest Diamond - Inside a Boy


sexta-feira, 12 de março de 2010

A bailarina


Esta menina

tão pequenina

quer ser bailarina.

Não conhece nem dó nem ré

mas sabe ficar na ponta do pé.

Não conhece nem mi nem fá

Mas inclina o corpo para cá e para lá.

Não conhece nem lá nem si,

mas fecha os olhos e sorri.

Roda, roda, roda, com os bracinhos no ar

e não fica tonta nem sai do lugar.

Põe no cabelo uma estrela e um véu

e diz que caiu do céu.

Esta menina

tão pequenina

quer ser bailarina.

Mas depois esquece todas as danças,

e também quer dormir como as outras crianças.


poema: Cecília Meireles

fotografia: António Silva

quinta-feira, 11 de março de 2010

Jónsi - Go Do


Quando à noite desfolho e trinco as rosas



É como se prendesse entre os meus dentes
todo o luar das noites transparentes,
todo o fulgor das tardes luminosas,
o vento bailador das primaveras,
a doçura amarga dos poentes,
e a exaltação de todas as esperas.
Quando à noite desfolho e trinco as rosas,
és tu a primavera que eu esperava,
a vida multiplicada e brilhante
em que é pleno e perfeito cada instante.

poema: Sophia de Mello Breyner Andresen
fotografia: Lúcia Letra

terça-feira, 9 de março de 2010

Rufus Wainwright - Somewhere Over The Rainbow




Num lugar além do arco-íris

Acima das montanhas
Existe uma terra de que eu ouvi falar
Uma vez numa canção de embalar

Num lugar além do arco-íris
Onde o céu é azul
E os sonhos que tu ousas sonhar
Realmente tornam-se realidade.

Um dia eu quis alcançar uma estrela
E acordei num lugar bem longe das nuvens

Onde os problemas se derretem como doces de limão
Num lugar bem acima do topo das chaminés
É onde me poderão encontrar.

Num lugar além do arco-íris
Pássaros azuis voam
Pássaros voam além do arco-íris
Porquê eles ... e eu não posso?

Então se os pequenos pássaros azuis voam
Além do arco-íris
Porquê... porque eu não posso?

As nossas mãos



O teu corpo entre a luz do azeite, ou as velas em castiçais, como o teu rosto aceso nos jantares. Nem um dia sem uma luz do sol. Nem uma noite sem uma luz das estrelas.
O teu corpo num altar. O teu corpo junto a um altar. O teu corpo, um altar onde beijo a cor do coração e me ajoelho, fixando os nossos olhares que olham na mesma direcção. Estão lá os nossos santos, a nossa fé, os nossos gestos encostados à berma do nosso leito, que é o leito e altar, antes de nos descansarmos.
As noites têm uma mão acesa, junto à lamparina azeite que é costume deixares a arder pela madrugada fora. Toco a tua mão acesa e dou-lhe a minha mão que arde de verdade. Pego na verdade e levo-a até ao nosso leito, como tu gostas... como nós gostamos. É bom olhar as nossas mãos, ardendo de verdade, buscando as circunstâncias de um tecido que nos abriga simples e unidos. Quando nos encontramos, uma vez e outra e outra, ficamos a falar conversas bonitas no lençol quente - e elas vão-se fechando aos poucos, ensonadas, até lhes adormecer a boca.
Pela manhã, gostamos e desejamos acordá-las felizes.
Gostamos, não. Desejamos, não. Elas acordam felizes. As mãos. Elas riem-se muito. Coram de lucidez matinal. Surpreendem-nos explodindo a sua força anímica, atarefadas de um lado para o outro, levando por diante as suas aspirações. E, no crepúsculo, já as nossas mãos se uniram assiduamente com conversas de pele, caminhando pela ladeira que leva à fonte - incansáveis de sede e aconchegadas ao cântaro de barro.

texto [excerto]: Maria Antonieta Preto
pintura: Isabel Lhano

Poema da despedida


Não saberei nunca

dizer adeus


Afinal,

só os mortos sabem morrer


Resta ainda tudo,

só nós não podemos ser


Talvez o amor,

neste tempo,

seja ainda cedo


Não é este sossego

que eu queria,

este exílio de tudo,

esta solidão de todos


Agora

não resta de mim

o que seja meu

e quando tento

o magro invento de um sonho

todo o inferno me vem à boca


Nenhuma palavra

alcança o mundo, eu sei


Ainda assim,

escrevo

poema: Mia Couto
fotografia: Graça Loureiro

magoa-me a saudade



Magoa-me a saudade
do sobressalto dos corpos
ferindo-se de ternura
dói-me a distante lembrança
do teu vestido
caindo aos nossos pés.

Magoa-me a saudade
do tempo em que te habitava
como o sal ocupa o mar
como a luz recolhendo-se
nas pupilas desatentas.

Seja eu de novo a tua sombra,
teu desejo,
tua noite sem remédio
tua virtude, tua carência
eu, que longe de ti sou fraco
eu, que já fui água,
seiva vegetal
sou agora gota trémula,
raiz exposta.

Traz de novo, meu amor,
a transparência da água
dá ocupação à minha ternura vadia
mergulha os teus dedos
no feitiço do meu peito
e espanta na gruta funda de mim
os animais que atormentam o meu sono.

poema: Mia Couto

fotografia: Romulo Lubachesky

segunda-feira, 8 de março de 2010

RECEITA PARA FAZER O AZUL



Se quiseres fazer azul,
pega num pedaço de céu e mete-o numa panela grande,
que possas levar ao lume do horizonte;
depois mexe o azul com um resto de vermelho
da madrugada, até que ele se desfaça;
despeja tudo num bacio bem limpo,
para que nada reste das impurezas da tarde.
Por fim, peneira um resto de ouro da areia
do meio-dia, até que a cor pegue ao fundo de metal.
Se quiseres, para que as cores se não desprendam
com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado.
Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez
ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre
na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor
até à altura dos olhos, e compare-la com o azul autêntico.
Ambas as cores te parecerão semelhantes, sem que
possas distinguir entre uma e outra.
Assim o fiz - eu, Abraão bem Judá Ibn Haim,
iluminador de Loulé - e deixei a receita a quem quiser,
algum dia, imitar o céu.

poema: Nuno Júdice
fotografia: Alastair Magnaldo

manoel de barros


domingo, 7 de março de 2010

Horizonte



Havia uma menina sentada junto a uma janela. Ela vestia uma velha camisa de dormir larga e tinha cabelos castanhos lisos, longos; tinha uma caixa de plástico vermelha no colo e olhava o horizonte cinzento ao longe. Talvez vivesse numa ilha e talvez brincasse junto ao mar nas tardes de verão. Ela estava sentada não sei bem se num banquinho de madeira ou se num rochedo do tamanho do mundo. Às vezes os seus olhos pousavam suavemente na caixa vermelha e os seus pequenos dedos imprimiam na superfície do plástico antigas histórias de gente que não mais voltara do mar. A casa era do tamanho de uma janela que dá para o mundo e a madeira cheirava a madeira e alguma coisa nela me dizia que outrora fora barcos. Nenhum entardecer se assemelhava ao que habitava aquela janela e a menina sabia-o, não sei bem como. Os seus olhos cinzentos olhavam o horizonte com a paciência de quem olha os horizontes e por vezes esticava o pescoço para ver mais longe. Ela descobrira sozinha o significado da palavra longe. O tempo era verdadeiramente algo indistinto e os cabelos acariciados pela tempestade gritavam aos olhos mais atentos a palavra eternidade. Sempre que abria as mãos caíam ao chão punhados de terra ainda misturada com raízes e no seu colo pousava aquela caixa vermelha de plástico liso, como uma mancha de sangue no branco sujo da camisa de dormir. Sempre que abria as mãos caíam no chão punhados de terra ainda misturada com raízes. (...) Um dia alguém vindo do mar dissera-lhe ao ouvido a palavra infinito e ela rira. Ria sempre que alguém dizia infinito. Desde então passava noites inteiras na sua janela. Nenhuma palavra se lhe ouvia, mas ria-se às vezes como se riem as crianças. (...) Outros dizem que aprendeu a falar com os mortos e que passeia no fundo dos mares; que chama pelo respectivo nome cada estrela e que tem uma música para cada pôr-do-sol; que guarda na pequena caixa de plástico todos os sonhos dos homens. Eu sei que ela tem uma janela nos olhos; imagino que corra na praia e que caminhe sem dificuldades na estrada do horizonte. (...)

poema: José Rui Teixeira

ilustração: Joana Quental

O Coração II


A solidão é perfeita como um rasgo entre
as nuvens, ao último sonho. A solidão
que se cala em teu fundo e vai envelhecendo
na terra perdida do som descompassado.

Te guardas na intimidade dos armários,
onde a paz é negra e se desagrega a luz.
Nunca foste mais do que uma ficção, matriz
de riso e sombra, um poço verde, teorema

de ilusões, engrenagem de poentes roxos.
E, agora, frouxo, já nada designas ou
desenhas. És, apenas, testemunha efémera

e longínqua, trovão engolido de Deus,
fingidor ferido de doces cantos, mentira
precária nas cordas de uma harpa febril.

poema: Orlando Neves
fotografia: Marta Ferreira

A idade de ser feliz


Existe somente uma idade para a gente ser feliz,somente uma época na vida de cada pessoa em que é possível sonhar e fazer planos e ter energia bastante para realiza-los a despeito de todas as dificuldades e obstáculos.
Uma só idade para a gente se encontrar com a vida e viver apaixonadamente e desfrutar tudo com toda intensidade sem medo nem culpa de sentir prazer. Fases douradas em que a gente pode criar e recriar a vida à nossa própria imagem e semelhança e vestir-se com todas as cores e experimentar todos os sabores e entregar-se a todos os amores sem preconceito nem pudor.
Tempo de entusiasmo e coragem em que todo desafio é mais um convite à luta que a gente enfrenta com toda disposição de tentar algo NOVO, de NOVO e de NOVO, e quantas vezes for preciso. Essa idade tão fugaz na vida da gente chama-se PRESENTE e tem a duração do instante que passa.

texto: Mário Quintana
fotografia: Marques Tavares Carlos