quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

bruto



o azul bruto da noite é um abismo:
cala-me a voz
ou a desata.


grito ou silêncio absoluto,
poema ou circunstância,

o azulnegro da noite bate no meu peito.



poema: silvia chueire
fotografia: Jordi Gallego

domingo, 27 de dezembro de 2009

Mãe



Mãe!

Vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que ainda não viajei.

Traze tinta encarnada para escrever estas coisas! Tinta cor de sangue, sangue! verdadeiro, encarnado!

Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!

Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra senão de viagens!


Quando voltar é para subir os degraus da tua casa, um por um. Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa. Depois venho sentar-me a teu lado. Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei, tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras.


Mãe! ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito apertado! Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa. Como a mesa. Eu também quero ter um feitio, um feitio que sirva exactamente para a nossa casa, como a mesa.


Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!

Quando passas a tua mão pela minha cabeça é tudo tão verdade!


poema: Almada Negreiros

pintura. Klimt

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Mergulha no meu colo




Quando descias à noite escura do meu colo recuperavas a tua claridade, a tua liberdade e segurança. Tal como naquela gruta marinha da nossa ilha, dizias: mergulha-se nas trevas para se encontrar numa maravilhosa luz azul.


literatura: Claudio Magris

fotografia: Inês d'Orey


quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Mundos Bordados (ou perspectivas de voar)



Se eu te trouxesse agora, de repente, glicínia
em vários tons (cruzamento de pólen e de céu),
de que seria o espanto feito teu?

Ou se te propusesse partir enfim no último avião
até ao fim do mundo, e ao fundo
da cabina, por baixo da ignição,

em esconderijo certo: caixa preta onde versos
preparados e duas taças longas de champanhe
(colheita especial)?

E no porão, em vez do mais convencional anel,
encontrasses sementes e perfumes?
Ou, quando já sobrevoando o mar,

eu convencesse aurora boreal, e entre o azul
e o rosa mais profundo, te desvendasse em mundo:
quatro cadeiras da mais neutra cor,

e mala de viagem de permeio, com carimbos
maiores, um nome a arder, bordado em cor lilás
e ponto muito cheio?

poema: Ana Luísa Amaral
fotografia: ellen kooi

As rotações perfeitas


Se me pedisses de repente e aqui:
«fala das luas e dos dias», eu
nem falaria, diria só que estar contigo
é estar-me:
ofício de tanto tempo,
e natural,
ajustado como pequeno girassol,
ao sul: um paisagem

Nem saberia por onde começar:
se no olhar, se na palavra,
ou se no teu sorriso
que me devastou o equilíbrio do igual

Não sei, meu amor,
como entender este pequeno girassol,
explicar-lhe o movimento certo,
a rotação completa e tão
perfeita,
as folhas muito verdes
de uma tal filigrama delicada
Sobretudo, este seu hino
em direcção a tudo

e já nem sei falá-lo,
porque lhe basta o tempo, e esse
- sem palavras


poema: Ana Luísa Amaral
fotografia: Nelson d'Aires

Palitinho e Fosforina Apaixonados


Palitinho amava Fosforina
gostava muito dela.
Com a sua figura franzina,
que quente era ela.

poema e ilustração: Tim Burton

Poema do Menino Jesus [Fernando Pessoa]


sábado, 19 de dezembro de 2009

Sigur Rós - Glósóli


Livros e flores



Teus olhos são meus livros.
Que livro há aí melhor,
Em que melhor se leia
A página do amor?

Flores me são teus lábios.
Onde há mais bela flor,
Em que melhor se beba
O bálsamo do amor?


poema: Machado de Assis
fotografia: Nelson d'Aires

O sorriso


Creio que foi o sorriso,
sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso.


poema: Eugénio de Andrade

fotografia: stadiumlove

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Amo-te Sempre



Amo-te sempre
com um pouco de barco e de vento
com uma humildade de mar à tua volta
dentro do meu corpo; com o desespero
de ser tempo;

com um pouco de sol e uma fonte
adormecida na ternura.

poema: Vítor Matos e Sá
fotografia: Regiane Cristina

O medo de nós próprios


Acredito que se um homem vivesse a sua vida plenamente, desse forma a cada sentimento, expressão a cada pensamento, realidade a cada sonho, acredito que o mundo beneficiaria de um novo impulso de energia tão intenso que esqueceríamos todas as doenças da época medieval e regressaríamos ao ideal helénico, possivelmente até a algo mais depurado e mais rico do que o ideal helénico. Mas o mais corajoso homem entre nós tem medo de si próprio. A mutilação do selvagem sobrevive tragicamente na auto-negação que nos corrompe a vida. Somos castigados pelas nossas renúncias. Cada impulso que tentamos estrangular germina no cérebro e envenena-nos. O corpo peca uma vez, e acaba com o pecado, porque a acção é um modo de expurgação. Nada mais permanece do que a lembrança de um prazer, ou o luxo de um remorso. A única maneira de nos livrarmos de uma tentação é cedermos-lhe. Se lhe resistirmos, a nossa alma adoece com o anseio das coisas que se proibiu, com o desejo daquilo que as suas monstruosas leis tornaram monstruoso e ilegal. Já se disse que os grandes acontecimentos do mundo ocorrem no cérebro. É também no cérebro, e apenas neste, que ocorrem os grandes pecados do mundo.

reflexão: Oscar Wilde
fotografia: Maria Flores

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

MAR-ALTO



E porque teu coração encerra
a saudade do mar e a saudade da terra
- tua ilha é grande...

E porque teus sentidos traçam norte e sul
e traçam leste e oeste norte e sul
- tua ilha é grande...

E porque tens os olhos virados para o azul
para lá do azul e para cá do azul
- tua ilha é grande...

E porque no teu sangue se deu o encontro de tantas raças
no mesmo latejar de ansiedades e resignações
dores alegrias e desgraças
- tua ilha é grande...

E porque a tua vida marca cada hora
como a onda dominadora
na alegria que chora
ou na tristeza que ri,
tua divisa ora
- em cada hora nasci...

poema: Manuel Lopes
fotografia: Renato Roque

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

5.



A quem darei todos os dias da minha vida? A voz que levo
em mim impressa como o rumor dos jardins, os rebanhos
descem pelas encostas, a neve abandona as giestas,
uma banda de província comemora o entardecer. Tu e eu dançaremos
como antigamente o verão nos chamava, pelas romarias,
e passaremos as noites em viagem. Reinventei o mundo agora,
tu o fizeste assim, uma única vez se diz o nome que nos fez
voar sobre as searas. A quem darei a minha vida?
aquilo que deixámos um no outro marcado como um fogo,
o sobressalto, as novas palavras. O tempo demora, e volve, devagar,
sobre si mesmo, nos pátios mais antigos. Do primeiro ao último dia,
a quem darei todos os dias da minha vida?

poema: Francisco José Luís Viegas
fotografia: ellen kooi

Primeiras Palavras



Se eu te pedisse um verso apenas
que palavras dirias para fixar a sombra
dos meus olhos? Essa árvore de onde
nascem os pássaros quase azuis, quase verdes,
de tanto poisarem no teu ombro.

poema: Francisco José Luís Viegas
pintura: Isabel Lhano

Sara Tavares - Ponto de Luz


A Mulher Mais Bonita do Mundo


estás tão bonita hoje. quando digo que nasceram
flores novas na terra do jardim, quero dizer
que estás bonita.

entro na casa, entro no quarto, abro o armário,
abro uma gaveta, abro uma caixa onde está o teu fio
de ouro.

entre os dedos, seguro o teu fino fio de ouro, como
se tocasse a pele do teu pescoço.

há o céu, a casa, o quarto, e tu estás dentro de mim.

estás tão bonita hoje.

os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios.

estás dentro de algo que está dentro de todas as
coisas, a minha voz nomeia-te para descrever
a beleza.

os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios.

de encontro ao silêncio, dentro do mundo,
estás tão bonita é aquilo que quero dizer.

poema: José Luís Peixoto
fotografia: Lylia Corneli

Traço Comum


descalço-me de sombras para chegar a ti
as linhas do meu rosto são claríssimas
nelas não vês o velho, a criança, o adulto
vês apenas o traço comum
que é onde eu procuro a tua mão
na transparência da minha palavra inteira

poema: Vasco Gato
fotografia: Maria José Amorim

A noite não me deu nenhum sossego



Como voltar feliz ao meu trabalho
se a noite não me deu nenhum sossego?
A noite, o dia, cartas dum baralho
sempre trocadas neste jogo cego.
Eles dois, inimigos de mãos dadas,
me torturam, envolvem no seu cerco
de fadiga, de dúbias madrugadas:
e tu, quanto mais sofro mais te perco.
Digo ao dia que brilhas para ele,
que desfazes as nuvens do seu rosto;
digo à noite sem estrelas que és o mel
na sua pele escura: o oiro, o gosto.

Mas dia a dia alonga-se a jornada
e cada noite a noite é mais fechada.


poema: William Shakespeare
fotografia: MARIAH

Mafalda Veiga - Estrada


segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

XIV


Quem é que gritou de alegria
quando a cor azul nasceu?

poema: Pablo Neruda
fotografia: Lauren Withrow

RUFUS WAINWRIGHT - ACROSS THE UNIVERSE




domingo, 6 de dezembro de 2009

As tuas mãos


Quando tuas mãos, amor,
procuram as minhas,
que me trazem em seu voo?
Por que se detiveram
na minha boca, de súbito,
por que é que as reconheço
como se já antes
as tivesse tocado,
como se antes de existir
tivessem percorrido
a minha fronte, a cintura?

A sua suavidade
voava sobre o tempo,
sobre o mar, sobre o fumo,
sobre a primavera,
e quando puseste
as mãos no meu peito,
reconheci essas asas
de pomba dourada,
reconheci essa greda
e essa cor de trigo.

Passei os anos
da minha vida a procurá-las.
Subi as escadas,
atravessei os recifes,
levaram-me os comboios,
as águas me trouxeram,
e na pele das uvas
imaginei tocar-te.

De repente a madeira
trouxe-me o teu contacto,
as amêndoas anunciavam-me
tua secreta doçura,
até que as tuas mãos
em meu peito se fecharam
e ali como duas asas
terminaram a viagem.

poema: Pablo Neruda

Os teus pés



Quando não posso contemplar teu rosto,
contemplo os teus pés.

Teus pés de osso arqueado,
teus pequenos pés duros.

Eu sei que te sustentam
e que teu doce peso
sobre eles se ergue.

Tua cintura e teus seios,
a duplicada púrpura
dos teus mamilos,
a caixa dos teus olhos
que há pouco levantaram vôo,
a larga boca de fruta,
tua rubra cabeleira,
pequena torre minha.

Mas se amo os teus pés
é só porque andaram
sobre a terra e sobre
o vento e sobre a água,
até me encontrarem.

poema: Pablo Neruda
fotografia: Lylia Corneli

Mafalda Veiga - Uma noite para comemorar


sábado, 5 de dezembro de 2009

II



O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo comigo
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo...

Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender ...
O mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo.

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe porque ama, nem o que é amar ...

Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...

fotografia: Helder Macedo

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Poesia



é a visita do tempo nos teus olhos,
é o beijo do mundo nas palavras

por onde passa o rio do teu nome;

é a secreta distância em que tocas

o princípio leve dos meus versos;

é o amor debruçado no silêncio

que te cerca e que te esconde:

como num bosque, lento, ouvimos

o coração de uma fonte não sei onde...


poema: Vítor Matos e Sá
pintura: Graça Martins

Amor




o teu rosto à minha espera, o teu rosto
a sorrir para os meus olhos, existe um
trovão de céu sobre a montanha.

as tuas mãos são finas e claras, vês-me
sorrir, brisas incendeiam o mundo,
respiro a luz sobre as folhas da olaia.

entro nos corredores de outubro para
encontrar um abraço nos teus olhos,
este dia será sempre hoje na memória.

hoje compreendo os rios. a idade das
rochas diz-me palavras profundas,
hoje tenho o teu rosto dentro de mim.

poema: José Luís Peixoto
fotografia: Lylia Corneli