quinta-feira, 29 de abril de 2010

A Flor



Pede-se a uma criança. Desenhe uma flor! Dá-se-lhe papel e lápis. A criança vai sentar-se no outro canto da sala onde não há mais ninguém.

Passado algum tempo o papel está cheio de linhas. Umas numa direcção, outras noutras; umas mais carregadas, outras mais leves; umas mais fáceis, outras mais custosas. A criança quis tanta força em certas linhas que o papel quase não resistiu.

Outras eram tão delicadas que apenas o peso do lápis já era demais.

Depois a criança vem mostrar essas linhas às pessoas: Uma flor!

As pessoas não acham parecidas estas linhas com as de uma flor!

Contudo, a palavra flor andou por dentro da criança, da cabeça para o coração e do coração para a cabeça, à procura das linhas com que se faz uma flor, e a criança pôs no papel algumas dessas linhas, ou todas. Talvez as tivesse posto fora dos seus lugares, mas são aquelas as linhas com que Deus faz uma flor!


texto [excerto]: José de Almada Negreiros

fotografia: Mariana Sabido

Valor das Palavras



Há palavras que fazem bater mais depressa o coração - todas as palavras - umas mais do que outras, qualquer mais do que todas. Conforme os lugares e as posições das palavras. Segundo o lado donde se ouvem - do lado do Sol ou do lado onde não dá o Sol.

Cada palavra é um pedaço do universo. Um pedaço que faz falta ao universo. Todas as palavras juntas formam o Universo.


texto [excerto]: José de Almada Negreiros

fotografia: Al Magnus

terça-feira, 27 de abril de 2010


Se eu nunca disse que os teus dentes

São pérolas,

É porque são dentes.

Se eu nunca disse que os teus lábios

São corais,

É porque são lábios.

Se eu nunca disse que os teus olhos

São d'ónix, ou esmeralda, ou safira,

É porque são olhos.

Pérolas e ónix e corais são coisas,

E coisas não sublimam coisas.

Eu, se algum dia com lugares-comuns

Houvesse de louvar-te,

Decerto que buscava na poesia,

Na paisagem, na música,

Imagens transcendentes

Dos olhos e dos lábios e dos dentes.

Mas crê, sinceramente crê,

Que todas as metáforas são pouco

Para dizer o que eu vejo.

E vejo lábios, olhos, dentes.


poema: Reinaldo Ferreira

pintura: Isabel Lhano

segunda-feira, 26 de abril de 2010



Distrair a morte é uma ciência que se aprende quando corajosos vasculhamos o seu mais íntimo existir. Foram diversas as ocasiões em que, na constante metamorfose, na vertigem que invade o sangue quando deus olha, o anjo agrilhoado me pediu para lhe abrir a porta
- Por favor?
- Suturei a morte com os teus lábios

texto [excerto]: Nuno Viana
fotografia: Daniel Camacho

As palavras



O preço de uma pessoa vê-se na maneira como gosta de usar palavras. Lê-se nos olhos das pessoas. As palavras dançam nos olhos das pessoas conforme o palco dos olhos de cada um.

texto [excerto]: José de Almada Negreiros
fotografia: Omar Cleunam

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Aventuras de João Sem Medo



Era uma vez um rapaz chamado João que vivia em Chora-Que-Logo-Bebes, exígua aldeia aninhada perto do Muro construído em redor da Floresta Branca, onde os homens, perdidos dos enigmas da infância, haviam estalado uma espécie de Parque de Reserva de Entes Fantásticos.
Apesar de ficar a pouca distância da povoação, ninguém se atrevia a devassar a floresta. Não só por se encontrar protegida pela altura do Muro, mas principalmente porque os choraquelogobebenses – infelizes chorincas que se lastimavam de manhã até à noite – mal tinham força para arrastar o bolor negro das sombras, quanto mais para se aventurarem a combater bichas de sete bocas, gigantes de cinco braços ou dragões de duas goelas. Preferiam choramingar, os maricas! (...)
O único que, talvez por capricho de contradizer o ambiente e instinto de refilar, resistia a esta choradeira pegada, era o nosso João que, em virtude duma contínua ostentação de bravata alegre e teimosia na luta, todos conheciam por João Sem Medo. (...)
- Mãe: não aturo mais isto. Vou saltar o Muro. (...)
Mas as implorações da mãe não impediram que, na manhã seguinte, João Sem Medo se esgueirasse de Chora-Que-Logo-Bebes e se dirigisse à socapa para o tal Muro que cercava a floresta e onde alguém escrevera este aviso:

É PROIBIDA A ENTRADA A QUEM NÃO ANDAR ESPANTADO DE EXISTIR.

texto [excerto]: José Gomes Ferreira
fotografia: Al Magnus

segunda-feira, 19 de abril de 2010



- Sabias que há palavras que se apaixonam, que têm amor dentro delas?
- Não.
- Palavras que te molduram o olhar, construindo o chão do teu amor por alguém, por onde depois caminharás vendado

texto [excerto]: Nuno Viana
fotografia: ellen kooi

domingo, 18 de abril de 2010

Tarde de leite e rosas, ouvindo a floresta



Tarde de leite e rosas. Cada aresta,
Tinha um rubi tremente:
Fomos ouvir o canto da floresta,
O seu canto de amor, ao sol poente.

Em cada ramo, um violino havia:
Cada folha vibrava, ágil, sonora,
Par'cendo que escondia uma harmonia,
Nas sombras das ramagens, a Aurora.

Como a floresta, meu amor, eu tento,
Atirar o meu canto pra a altura:
Para a fazer cantar, toca-lhe o vento,
Pra me fazer cantar, no pensamento,
Passa o sopro da tua formosura.

poema: João Lúcio
fotografia: Rarindra Prakarsa

sábado, 17 de abril de 2010

Coração Polar



Não sei de que cor são os navios
quando naufragam no meio dos teus braços
sei que há um corpo nunca encontrado algures no mar
e que esse corpo vivo é o teu corpo imaterial
a tua promessa nos mastros de todos os veleiros
a ilha perfumada das tuas pernas
o teu ventre de conchas e corais
a gruta onde me esperas
com teus lábios de espuma e de salsugem
os teus naufrágios
e a grande equação do vento e da viagem
onde o acaso floresce com seus espelhos
seus indícios de rosa e descoberta.
Não sei de que cor é essa linha
onde se cruza a lua e a mastreação
mas sei que em cada rua há uma esquina
uma abertura entre a rotina e a maravilha .
há uma hora de fogo para o azul
a hora em que te encontro e não te encontro
há um ângulo ao contrário
uma geometria mágica onde tudo pode ser possível
há um mar imaginário aberto em cada página
não me venham dizer que nunca mais
as rotas nascem do desejo
e eu quero o cruzeiro do sul das tuas mãos
quero o teu nome escrito nas marés
nesta cidade onde no sítio mais absurdo
num sentido proibido ou num semáforo
todos os poentes me dizem quem tu és.

poema: Manuel Alegre
fotografia: João Chaves