sábado, 28 de novembro de 2009

dedos e dedos



voa comigo nos ombros da noite
enlaçados como dedos e dedos
na ternura completa das mãos.

inventemos asas até que nos
tenham como irmãos os pássaros
e as crianças nos persigam
pelo areal - o voo que é delas também.

acredita que o nosso olhar tocará um dia
o horizonte com tal força que a nossa palavra
ficará redonda, redonda como os ombros
desta noite em que te convido a descobrires
comigo o amor enorme que a maré nos tem

quando nos cobre os pés e nos obriga a nascer.

poema: Vasco Gato
fotografia: camilla engman

Regras do Esquecimento



Não esqueças sobretudo a armadura
da noite,
a aspereza das estrelas
quando os olhos são recentes
e a gravitação é como um poder
sucinto nas mãos.

Não esqueças sobretudo como os cereais
lavram os campos estafados, destilam
prodígio pelos sulcos da memória,
oferecem-te uma vida maior
em troca do sal
das pálpebras.

Não esqueças sobretudo de olhar devagar.

poema: Vasco Gato
fotografia: Lylia Corneli

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Sem Ti

E de súbito desaba o silêncio.
É um silêncio sem ti,
sem álamos,
sem luas.

Só nas minhas mãos
ouço a música
das tuas

Devias Estar Aqui

Devias estar aqui rente aos meus lábios
para dividir contigo esta amargura
dos meus dias partidos um a um

- Eu vi a terra limpa no teu rosto,
Só no teu rosto e nunca em mais nenhum

poemas: Eugénio de Andrade
fotografia:
Sara Sa
poderei dizer casa
como quem diz amor
ou declamar cada uma
das suas divisões
como um episódio
dos meus sonhos

poema: Jorge Teixeira
fotografia: Marta Ferreira

domingo, 22 de novembro de 2009

segredo



segreda-me a canção dos dias
sem que nos ouça a noite terrível
e deixa que dance em mim a voz,
a voz azul que é o lugar onde
o mundo não pára de nascer.

segreda-me o teu nome, agora,
e farei de nós o amor, a constelação,
o sonho de uma estação sem morte.

poema: Vasco Gato
fotografia: grendel art

sábado, 21 de novembro de 2009

abro os olhos


abro os olhos e desperto o dia. crio
a explosão do sol cheio sobre
mim. arranco-me à terra que
na noite me lançou raízes
e sacudo-me.
separo os braços, abro
o vento com as unhas. imagino
um voo firme. cumpro o
corpo e outras grandes
mentiras

poema: valter hugo mãe

fotografia: nelson d' aires

Confidência



Diz o meu nome
pronuncia-o
como se as sílabas te queimassem os lábios
sopra-o com a suavidade
de uma confidência
para que o escuro apeteça
para que se desatem os teus cabelos
para que aconteça

Porque eu cresço para ti
sou eu dentro de ti
que bebe a última gota
e te conduzo a um lugar
sem tempo nem contorno

Porque apenas para os teus olhos
sou gesto e cor
e dentro de ti
me recolho ferido
exausto dos combates
em que a mim próprio me venci

Porque a minha mão infatigável
procura o interior e o avesso
da aparência
porque o tempo em que vivo
morre de ser ontem
e é urgente inventar
outra maneira de navegar
outro rumo outro pulsar
para dar esperança aos portos
que aguardam pensativos

No húmido centro da noite
diz o meu nome
como se eu te fosse estranho
como se fosse intruso
para que eu mesmo me desconheça
e me sobressalte
quando suavemente
pronunciares o meu nome

poema: Mia Couto
pintura: Isabel Lhano

Nomeei-te no meio dos meus sonhos
chamei por ti na minha solidão
troquei o céu azul pelos teus olhos
e o meu sólido chão pelo teu amor

poema: Ruy Belo
ilustração: Mel Kadel

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Em Todas as Ruas te Encontro



Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco


poema: Mário Cesariny de Vasconcelos
fotografia: Carla Salgueiro

domingo, 15 de novembro de 2009

sexta-feira, 13 de novembro de 2009



Não comes a força do outro olhando-o longamente, mas afinal sim: comes a força do outro olhando-o longamente. Não faças isso se não o amares.

texto [excerto]: Gonçalo M. Tavares
fotografia: sweetcharade


Os mais fortes pensamentos são os que se encontram próximos da estrutura de uma declaração de amor. Procuras as palavras e a sua sequência, mas o ponto de origem é um sentimento. Estou a sentir tanto que até era capaz de pensar, diz alguém.

texto [excerto]: María Zambrano
ilustração: Alberto Vázquez


Depois da infância o universo só interessa aos distraídos. Pois bem: acolher o invisível como a única notícia insólita.

texto [excerto]: Gonçalo M. Tavares
ilustração: Mel Kadel

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Setembro



4.
dá-me a tua mão
para buscarmos o mar
depois
coar a luz e dizer liberdade.

poema: Ivo Machado
fotografia: Lylia Corneli

Flor de Tinta



O poema é o desenho desta letra

inclinada pelo rumor do vento

quando lhe peço abrigo

e vejo nele o espelho do meu corpo

repousando nos teus braços de ontem.


A tinta ainda não acabou de secar

O cheiro fresco da página vira-se para a página seguinte

e a minha voz ouve-se melhor ao vento

quando conspiramos no silêncio

a próxima letra

e a exactidão do seu desenho.


Agora há mimosas nas árvores

e lá em baixo o rio já não é como era

nem saberia sê-lo.

Esqueci como se bebe a água pela mão

ou como se bebe a mão

do rio.


Eu existia nessa transparência,

na flor espiritual e líquida

da tinta

que retoca no papel a sua vida.

Esta letra é o meu nome soletrado por ti,

o meu nome que ainda não está seco

e te olha nas acácias florindo em amarelo

no rigor do inverno.


Qualquer palavra tua me desenha

e assim começa qualquer coisa

que me estava destinada desde sempre.


poema: Rosa Alice Branco

ilustração: Isabelle Arsenault

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Ser Doido-Alegre, que Maior Ventura!



Ser doido-alegre, que maior ventura!
Morrer vivendo p'ra além da verdade.
É tão feliz quem goza tal loucura
Que nem na morte crê, que felicidade!

Encara, rindo, a vida que o tortura,
Sem ver na esmola, a falsa caridade,
Que bem no fundo é só vaidade pura,
Se acaso houver pureza na vaidade.

Já que não tenho, tal como preciso,
A felicidade que esse doido tem
De ver no purgatório um paraíso...

Direi, ao contemplar o seu sorriso,
Ai quem me dera ser doido também
P'ra suportar melhor quem tem juízo.

poema: António Aleixo
fotografia: Wenderson Araújo

A Profundidade do Ser



E de vez em quando descer à gravidade de mim, à profundidade do meu ser. E verificar então que tudo se transfigura. Que é que significa este garatujar quase gratuito, este riso superficial, todo este modo de ser menor? A melancolia profunda, tão de dentro que ela se iguala à alegria sem medida. Espaço rarefeito de nós, é o lugar da grandeza do homem, do que é nele fundamental, o lugar do aparecimento de Deus. Mas Deus não me aparece - aparece apenas a inundação que me vem da infinita beatitude, da grandeza e do assombro. Nós vivemos habitualmente à superfície de nós, ligados ao que é da vida imediata, enredados nas mil futilidades com que se nos enchem os dias. Mas de vez em quando, o abismo da natureza, um livro ou uma música que dos abismos vem, abre-nos aos pés um precipício hiante e tudo se dilui num sentir que está antes e abaixo e mais longe que esse tudo. Há uma harmonia que em nós espera por um som, um acorde, uma palavra, para imediatamente se organizar e envolver-nos. E aí somos verdade para a infinidade dos séculos.

reflexão: Vergílio Ferreira
fotografia: Fátima Joaquim

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Nascente


Quando sinto de noite
o teu calor dormente
e devagar
para que não despertes
digo: cedro azul,
terra vegetal,
ou só
amor, amor;
quando te acaricio
e devagar
para que não despertes
tomo na mão direita
as duas fontes, iguais, da vida,
procuro a nascente
e adormeço
nela essa mão depositando.


poema: António Osório
fotografia: Guilherme Limas



Deus vem buscar o homem. A beleza não é mais do que Deus que vem buscar o homem.
Tudo aquilo que é beleza no mundo é como uma encarnação. Em tudo aquilo que nos dá o puro sentimento do belo, há presença real de Deus.
A beleza é esta presença de Deus entre nós.

pensamento: Simone Weil

domingo, 8 de novembro de 2009

Amo-te nesta Ideia Nocturna da Luz nas Mãos



Amo-te nesta ideia nocturna da luz nas mãos
E quero cair em desuso
Fundir-me completamente.
Esperar o clarão da tua vinda, a estrela, o teu anjo
Os focos celestes que a candeia humana não iguala
Que os olhos da pessoa amada não fazem esquecer.
Amo tão grandemente a ideia do teu rosto que penso ver-te
Voltado para mim
Inclinado como a criança que quer voltar ao chão.

poema: Daniel Faria
pintura: Isabel Lhano

Para Ti



Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo

Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre

Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só
amando de uma só vida


poema: Mia Couto

fotografia: Augusto Peixoto

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

O Nosso Livro



Livro do meu amor, do teu amor,
Livro do nosso amor, do nosso peito...
Abre-lhe as folhas devagar, com jeito,
Como se fossem pétalas de flor.

Olha que eu outro já não sei compor
Mais santamente triste, mais perfeito
Não esfolhes os lírios com que é feito
Que outros não tenho em meu jardim de dor!

Livro de mais ninguém! Só meu! Só teu!
Num sorriso tu dizes e digo eu:
Versos só nossos mas que lindos sois!

Ah, meu Amor! Mas quanta, quanta gente
Dirá, fechando o livro docemente:
"Versos só nossos, só de nós os dois!..."

poema: Florbela Espanca
fotografia: Augusto Peixoto



Não sei dizer de onde chegam as tuas mãos
Mas essa luz não pertence a este mundo
Só dedos assim tão finos
Poderiam penetrar a espessura da noite
Trazendo ainda frescas umas gotas de manhã.

poema: Luís Falcão
fotografia: Lylia Corneli

Kseniya Simonova


terça-feira, 3 de novembro de 2009

Para ler, repetindo os movimentos



Quando, para receberes alguém, abres os braços, a referida distância aumenta e a mão, em cada ponta, assinala um certo modo com que o teu corpo se dispersa. Quando o abraço se concretiza e nas costas do outro as mãos finalmente se reencontram, formalizam um símbolo ao mesmo desolador e esperançoso: é que só nas costas do outro as tuas duas partes se unem com uma energia digna de admiração. Experimenta, sem outro corpo no meio, unir com força, com violência até, as tuas mãos, e verás o ridículo, perceberás a diferença de intensidade.

texto [excerto]: Gonçalo M. Tavares
fotografia: Lylia Corneli

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

DO MEDO EM DIANTE


Trazia a novidade de não ter medo

de descer a rua e atravessar a sombra

dos prédios atirada como arma

de granito, como festejo de civilização.


Perdera subitamente o medo do seu século,

do século que se vivia naquela rua

onde alguns se morriam à injecção,

do século das luzes dos seus vizinhos

a apagarem-se ao mesmo tempo

sem nunca terem trocado nada que não

essa distância de garagem, essa coincidência

dos horários civilizacionais.


Trazia a consciência de ser europeia

(África doera-lhe nos olhos como holofotes)

e de não querer escrever sobre esse assunto.

mas não ter medo de apagar sozinha a luz àquela hora,

não ter medo de nunca estacionar o carro na garagem

e de estar por isso sempre mais só do que os vizinhos,


pensava,


era suficientemente novo

para o poema.


poema: Filipa Leal

fotografia: Ricardo Gonçalves

Canção do Amor-Perfeito



Eu vi o raio de sol
beijar o outono.
Eu vi na mão dos adeuses
o anel de ouro.
Não quero dizer o dia.
Não posso dizer o dono.

Eu vi bandeiras abertas
sobre o mar largo
e ouvi cantar as sereias.
Longe, num barco,
deixei meus olhos alegres,
trouxe meu sorriso amargo.

Bem no regaço da lua,
já não padeço.
Ai, seja como quiseres,
Amor-Perfeito,
gostaria que ficasses,
mas, se fores, não te esqueço.

poema: Cecília Meireles
fotografia: Carla Salgueiro

domingo, 1 de novembro de 2009



Uma criança disse a outra: Impossível fugir ao
teu olhar. Ao aroma de teus cabelos.

poema: Isabel de Sá
fotografia: Lylia Corneli