domingo, 30 de maio de 2010

sábado, 29 de maio de 2010

A verdade



Eu tinha chegado tarde à escola. O mestre quis, por força, saber porquê. E eu tive que dizer: Mestre! quando saí de casa tomei um carro para vir mais depressa, mas, por infelicidade, diante do carro caiu um cavalo com um ataque que durou muito tempo.

O mestre zangou-se comigo: Não minta! diga a verdade! E eu tive de dizer: Mestre! quando saí de casa... minha mãe tinha um irmão no estrangeiro e, por infelicidade, morreu ontem de repente e nós ficámos de luto carregado.

O mestre ainda se zangou mais comigo: Não minta! diga a verdade!!

E eu tive de dizer: Mestre! quando saí de casa... estava a pensar no irmão de minha mãe que está no estrangeiro há tantos anos, sem escrever. Ora isto ainda é pior do que se ele tivesse morrido de repente porque nós não sabemos se estamos de luto carregado ou não.

Então o mestre perdeu a cabeça comigo: Não minta, ouviu? diga a verdade, já lho disse!

Fiquei muito tempo calado. De repente, não sei o que me pas­sou pela cabeça que acreditei que o mestre queria efectivamente que lhe dissesse a verdade. E, criança como eu era, pus todo o peso do corpo em cima das pontas dos pés, e com o coração à solta confessei a verdade: Mestre! antes de chegar à Escola há uma casa que vende bonecas. Na montra estava uma boneca vestida de cor-de-rosa! Mestre! a boneca estava vestida de cor-de-rosa! A boneca tinha a pele de cera. Como as meninas! A boneca tinha tranças caídas. Como as meninas! A boneca tinha os dedos finos. Como as meninas! Mestre! A boneca tinha os dedos finos...


poema: José de Almada Negreiros

fotografia: Al Magnus

quarta-feira, 26 de maio de 2010

O Príncipe Feliz [Oscar Wilde]




Na mais central praça da cidade erguia-se a estátua do Príncipe Feliz. Era uma autêntica jóia.

Um dia pousou aos pés da estátua uma formosa andorinha, que estava de passagem para o Egipto. Era a sua última oportunidade, pois havia-se atrasado ao querer convencer um junco a acompanhá-la na viagem. Mas o junco não pode separar-se da terra que lhe dá a vida, apesar do amor que o liga à andorinha...!
Olhando com mais atenção para a estátua, a andorinha notou que duas gotas lhe molhavam a cara... Eram duas grossas lágrimas!

-Porque choras, Príncipe?
-Pelos pobres da cidade, amiguinha. Há tantos! Quando reinava, ninguém me contava nada do que sucedia, e os altos muros do Palácio não me deixavam ver. Mas desde que me colocaram aqui posso ver a pobreza e a miséria de tanta gente, e sinto-me angustiado. Queres ajudar-me?
-Estou de passagem para o Egipto... -respondeu-lhe a andorinha.
Mas o Príncipe pediu-lhe tanto, que acabou por dizer que sim.
-Arranca o rubi da minha espada. Leva-o ali àquele casebre em frente. Lá vivem uns meninos pobres que não podem pagar o aluguer. Querem pô-los na rua... Impede-lo!
A andorinha arrancou o rubi da espada e levou-o ao casebre.
-Olhem, deixou-nos uma coisa.
-É uma jóia. Podemos vendê-la e com o dinheiro pagar o aluguer da nossa casa. - disse a mais velha.
Voltando para junto da estátua, a andorinha disse ao Príncipe:
-Terminei, Príncipe. Agora vou partir para o Egipto.
-Espera um pouco, amiguinha. Há mais pobres na cidade. Leva uma safira a um escritor doente, que é tão pobre que nem pode pagar os remédios.
-Mas a safira é um dos teus olhos. Vais ficar vesgo se t'o arrancar.
-Não faz mal! Anda, vai ajudá-lo.
A andorinha voou até à arruinada cabana que o Príncipe lhe tinha indicado. E a safira serviu para salvar o velho escritor.
Havia mais pobres na cidade. A andorinha tinha que voar para o Egipto, onde passaria o Inverno junto com as irmãs... mas o Príncipe pediu-lhe que tirasse a outra safira do olho.
-Se o fizeres FICARÁS CEGO!
-Não faz mal, andorinha.
Estava muito frio. O Inverno já se instalava. E a andorinha foi socorrer outros pobres. Arrancou uma a uma as lâminas de ouro da estátua. E quando acabou e dela já nada de valor restava, deitou-se aos pés do amigo. Não o abandonaria assim cego...! E numa noite ainda mais fria a andorinha morreu, o que feriu profundamente o coração de chumbo do Príncipe Feliz.
Como a estátua sem os enfeites ficara muito feia, um dia baixaram-na do pedestal e levaram-na para uma fundição. Mas ao fundi-la verificaram que o coração de chumbo resistia ao calor mais elevado. Deram-no então a outro ferreiro, que também não conseguiu fundi-lo.
-Tragam ao Céu o coração de chumbo do Príncipe Feliz e o corpo da Andorinha -ordenou Deus, sorrindo.
-Nunca na Terra ninguém demonstrou tanto amor pelos pobres -acrescentou. -Por isso vão ficar eternamente a meu lado.

sábado, 15 de maio de 2010

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Sítio exacto


Sei que não acaba
o teu prazer,
nem o meu.

Alguém
ama connosco
e nos leva
ao sítio exacto
das estações.

Nem o sono
depois nos pertence,
quinhão de outros
herdado após amarem.

poema: António Osório

fotografia: Carla Salgueiro

Devo-te



Devo-te tanto como um pássaro
deve o seu voo à lavada
planície do céu.

Devo-te a forma
novíssima de olhar
teu corpo onde às vezes
desce o pudor o silêncio
de uma pálpebra mais nada.

Devo-te o ritmo
de peixe na palavra,
a genesíaca, doce
violência dos sentidos;
esta tinta de sol
sobre o papel de silêncio
das coisas - estes versos
doces, curtos, de abelhas
transportando o pólen
levíssimo do dia;
estas formigas na sombra
da própria pressa e entrando
todas em fila no tempo:
com uma pergunta frágil
nas antenas, um recado invisível, o peso
que as deixa ser e esquece;
e a tua voz que compunha
uma casa, uma rosa
a toda a volta - ó meu amor vieste
rasgar um sol das minhas mãos!

poema: Vítor Matos e Sá
fotografia: Alba Luna

"Apanha os botões de rosa enquanto podes
o tempo voa
e esta flor que hoje sorri
amanhã estará moribunda"

poema: Walt Whitman
fotografia: Marcel Caram

domingo, 2 de maio de 2010




Dormiam no fogo, em brancos cavalos atraves-
savam jardins.
A música emanava dos corpos, transmitia-se à
vegetação.

Iam umas nas outras, as crianças,
levando nos cabelos o cheiro violento das tangerinas.

poema: Isabel de Sá
fotografia: Rarindra Prakarsa