sábado, 31 de outubro de 2009

Outro Poema



Perguntais-me porque estou aqui, na montanha azul.
Eu não respondo, simplesmente sorrio, o coração em paz.
Caem as flores, corre a água, tudo se vai sem deixar marca.
É este o meu universo, diferente do mundo dos homens.

poema: Li Tai Po
fotografia: David W.E. Gavin

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

HOME [Will Young and Nitin Sawhney]


A Casa



A Casa. Há-de o meu ser
Afeiçoar-se à Casa.
Como a pedra ao escultor,
A palavra ao poeta.
Nos silêncios, no escuro,
Nos sonos e nos sonhos,
Sugada pela casa,
Estarei presente em tudo.

poema [excerto]: Natércia Freire
fotografia: Eugenio Eugenio

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Tu eras também uma pequena folha
que tremia no meu peito.
O vento da vida pôs-te ali.
A princípio não te vi: não soube
que ias comigo,
até que as tuas raízes
atravessaram o meu peito,
se uniram aos fios do meu sangue,
falaram pela minha boca,
floresceram comigo.


poema: Pablo Neruda
fotografia: Daniel Pedrogam

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Poema de Amor


Teu rosto, no meu rosto, descansado.
Meu corpo, no teu corpo, adormecido.
Bater de asas, tão longe, noutro tempo,
Sem relógio nem espaço proibido.

Oh, que atónitos olhos nos contemplam,
Nos sorriem e nos dizem: Sossegai!
Românticos amantes, viajantes eternos,
Olham por nós na hora que se esvai!

Que música de prados e de fontes!
Que riso de águas vem para nos levar?
Meu rosto, no teu rosto de horizontes,
Meu corpo,
no teu corpo, a flutuar.

poema: Natércia Freire
fotografia:
Laurens Sohni

Mafalda Veiga - Gente Perdida


terça-feira, 27 de outubro de 2009

As Frágeis Hastes



Não voltarei à fonte dos teus flancos
ao fogo espesso do verão
a escorrer infatigável

dos espelhos, não voltarei.


Não voltarei ao leito breve

onde quebrámos uma a uma
todas as frágeis
hastes do amor.


Eis o outono: cresce a prumo.
Anoitecidas águas
em febre em fúria em fogo
arrastam-me para o fundo.

poema: Eugénio de Andrade
fotografia: grENDel

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

poema das coisas aladas no coração da minha irmã flor


as coisas aladas ensinam o chão. explicam-lhe quanto há entre terra e céu, o

caminho livre do voo, a vista elevada de deus. eu vejo anjos e os anjos são,

das coisas aladas os sonhos mais completos. erguem-se braçados de asas a

educar o vento, percursos de sopro que se abrem nas dimensões, e luzem nas

nossas cabeças como homens enfim pássaros. como se as árvores pudessem

ser casas nossas e nada nos acordasse na força do frio ou da chuva. como se

nos cumprimentássemos em pleno ar, seres tão leves atarefados com mais

nada. seríamos só pulmões cheios, máquinas de pairar, alegres imprecisões

ao alto


poema: valter hugo mãe

fotografia: Eugenio Eugenio

domingo, 25 de outubro de 2009

António Lobo Antunes



Tenho saudades de deitar a cabeça no colo da minha avó só para ela me fazer festas no cabelo. Muitas vezes sinto que ainda preciso dela para isso.

Eu nasci de uma mulher e é um milagre que eu não esqueço porque passei nove meses no seu ventre. Recebi das mulheres muito amor, doçura e capacidade de perdão, e isso é muito importante para mim.

O que é que passei a fazer diferente? Olhe passei a beijar os meus amigos. É bom beijar um homem e eu não sabia.

pensamentos: António Lobo Antunes [na entrevista à RTP]

Nada entre nós tem o nome da pressa



Nada entre nós tem o nome da pressa.
Conhecemo-nos assim, devagar, o cuidado
traçou os seus próprios labirintos. Sobre a pele
é sempre a primeira vez que os gestos acontecem. Porém,

se se abrir uma porta para o verão, vemos as mesmas coisas
o que fica para além da planície e da falésia; a ilha,
um rebanho, um barco à espera de partir, uma palavra
que nunca escreveremos. Entre nós


o tempo desenha-se assim, devagar.

Daríamos sempre pelo mais pequeno engano.


poema: Maria do Rosário Pedreira

pintura: Klimt

Into The Wild - Rise (Eddie Vedder)


As mulheres aspiram a casa para dentro dos pulmões



As mulheres aspiram a casa para dentro dos pulmões
E muitas transformam-se em árvores cheias de ninhos - digo,
As mulheres - ainda que as casas apresentem os telhados inclinados
Ao peso dos pássaros que se abrigam.

É à janela dos filhos que as mulheres respiram
Sentadas nos degraus olhando para eles e muitas
Transformam-se em escadas

Muitas mulheres transformam-se em paisagens
Em árvores cheias de crianças trepando que se penduram
Nos ramos - no pescoço das mães - ainda que as árvores irradiem
Cheias de rebentos

As mulheres aspiram para dentro
E geram continuamente. Transformam-se em pomares.
Elas arrumam a casa
Elas põem a mesa
Ao redor do coração.

fotografia: Lylia Corneli

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entrego-te as palavras mais brandas
que entre os meus dedos construí
para alimentar de ti os recantos da casa
invadindo o coração da noite

poema [excerto]: Alice Vieira
fotografia: Inês d' Orey

Tchello d'Barros - Poemínimos Quase Românticos


sexta-feira, 23 de outubro de 2009


dos rios não nascem flores

sempre o soubemos

mesmo nas noites mais longas.

as flores vinham de longe

se calhar de um lugar

primitivo, puro

como os anjos e as borboletas

lembras-te


poema: Jorge Teixeira

Adriana Calcanhoto «Senhas»


amiina - seoul


Cântico do amor



O amor jamais passará.
As profecias terão o seu fim,
o dom das línguas terminará
e a ciência vai ser inútil.
Pois o nosso conhecimento é imperfeito
e também imperfeita é a nossa profecia.


poema [excerto]: Paulo de Tarso

Como podemos esperar



Como podemos esperar.
Aguardar o que nossas mãos possam reter.
Uma palavra. O olhar cúmplice. Se as coisas
têm já o estado do vento
o que nas ruas fica das vozes ao fim do dia.

Aguardar mais aguardar nada
quanto mais se repete uma palavra
«estou sentado virado para a parede desta casa»
baixo, mais baixo ainda,
«estou sentado virado para a parede desta casa».

Fazer que não haja sucedido o sucedido.
O prazer de sentir chegar as coisas
o riso sob a chuva
o frio que faz. Aqui

como podemos esperar uma noite de lua e vento?

poema: João Miguel Fernandes Jorge
fotografia: Augusto Peixoto

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

um dizer ainda puro



imagino que sobre nós virá um céu

de espuma e que, de sol em sol,

uma nova língua nos fará dizer

o que a poeira da nossa boca adiada

soterrou já para lá da mão possível

onde cinzentos abandonamos a flor.


dizes: põe nos meus os teus dedos

e passemos os séculos sem rosto,

apaguemos de nossas casas o barulho

do tempo que ardeu sem luz.

sim, cria comigo esse silêncio

que nos faz nus e em nós acende

o lume das árvores de fruto.


diz-me que há ainda versos por escrever,

que sobra no mundo um dizer ainda puro.


poema: Vasco Gato

fotografia: Jordi Gallego i Caldas

A vocação dos homens silenciosos



A vocação dos homens silenciosos
é, ao longe, serem aves.

poema: Sandra Costa
fotografia: Ellen Kooi

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desenha com a ponta dos teus dedos
as fronteiras exactas do meu rosto
as rugas os sinais a cicatriz que ficou da infância
o lento sulco das lâminas onde no peito
se enterra o mistério do amor

poema [excerto]: Alice Vieira
fotografia: Lilya Corneli

Perfeição é Virtude e não Ausência de Defeitos



A virtude é a perfeição no estado de homem e não a ausência de defeitos. Se eu quero construir uma cidade, pego na malandragem e na ralé. O poder há-de nobilitá-las. Ofereço-lhes uma embriaguez, diferente da embriaguez medíocre da rapina, da usura ou da violação. É ver aqueles braços nodosos que edificam. O orgulho vai-se transformando em torres, templos e muralhas. A crueldade torna-se grandeza e rigor na disciplina. E ei-los a servirem uma cidade nascida deles próprios. Trocaram-se por ela no fundo dos corações. E morrerão de pé, nas muralhas, para a salvarem. Só descobrirás neles virtudes resplandecentes.

«Mas tu, que pões má cara diante do poder da terra, diante da grosseria, da podridão e dos vermes dos homens, começas por pedir ao homem que não seja e que não tenha nem sequer cheiro. Reprovas-lhe a expressão da sua força. Instalas capados à frente do império. E eles entram a perseguir o vício, que não passa de poder mal empregado. É o poder e a vida que eles perseguem e, no entanto, tornam-se guardiões de museu e vigiam um império morto.»

reflexão: Antoine de Saint-Exupéry
fotografia: Arthur Tress

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Marés e marinheiros


A vida hoje afastou-nos da natureza: as paisagens urbanas, com as suas florestas de betão, encerram a vida entre paredes eficazes, super-cómodas, é certo, mas o ar que respiramos por alguma razão se chama “ar condicionado”.

O que acredito é que precisamos de amplitude, de campos vastos a perder de vista, de viagens mais profundas que as da rotina. Precisamos perceber o silêncio das coisas, cúmplice do silêncio da nossa alma.

Precisamos da liberdade leve dessas horas inapreensíveis que passamos junto ao mar.

Há um poeta que diz: “Deus anda à beira d’água”. Não me admiro nada. A imensidão, o nome límpido, a alegria azul do mar são luares onde Deus deixou o Seu toque.

Os caminhos marítimos para os outros continentes estão descobertos. Falta, talvez, (re)descobrir o caminho marítimo para o porto secreto de cada coração.


reflexão: José Tolentino Mendonça

pintura: Salvador Dalí

terça-feira, 20 de outubro de 2009

na mão madura a luz imóvel pára a pêra sucessiva,
pára-a e exara-a e nela sela
a beleza:
era o segredo:
o mundo já estava pronto

poema: Herberto Helder
pintura: Artur Cruzeiro Seixas

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

O que é voar?


É só subir no ar,
levantar da terra o corpo,os pés?

Isso é que é voar?
Não.

Voar é libertar-me,
é parar no espaço inconsistente,
é ser livre,leve,independente,
é ter a alma separada de toda a existência,
é não viver senão em não-vivência.

E isso é voar?
Não.

Voar é humano,
é transitório,momentâneo...

Aquele que voa tem de poisar em algum lugar:
isso é partir e não voltar.

poema: Ana Hatherly
pintura: René Magritte

Clube dos Poetas Mortos


Mar Adentro


Lágrimas Ocultas


Se me ponho a cismar em outras eras
Em que ri e cantei, em que era querida,
Parece-me que foi noutras esferas,
Parece-me que foi numa outra vida ...

E a minha triste boca dolorida,
Que dantes tinha o rir das primaveras,
Esbate as linhas graves e severas
E cai num abandono de esquecida!

E fico, pensativa, olhando o vago ...
Toma a brandura plácida dum lago
O meu rosto de monja de marfim ...

E as lágrimas que choro, branca e calma,
Ninguém as vê brotar dentro da alma!
Ninguém as vê cair dentro de mim!


poema: Florbela Espanca
pintura: René Magritte

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Acende a luz da minha vida
Com a tua chama, oh, meu Amor!
Estou à espera da tarde
Em que vens pelo caminho trazendo a tua chama,
E o meu coração amadurecido nas suas trevas
Acender-se-á como uma labareda.

poema: Rabindranath Tagore
fotografia:
Jordi Gallego i Caldas

domingo, 18 de outubro de 2009

Amor como em Casa



Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.

poema: Manuel António Pina
fotografia: Inês d' Orey

Não ame pela beleza, pois um dia ela acaba. Não ame por admiração, pois um dia você se decepciona. Ame apenas, pois o tempo nunca pode acabar com um amor sem explicação.

Se um dia eu for Santa, serei com certeza a santa da escuridão. Estarei continuamente ausente do Paraíso.

O que eu faço, é uma gota no meio de um oceano. Mas sem ela, o oceano será menor.

pensamentos: Madre Teresa de Calcutá

Chamar a Si Todo o Céu com um Sorriso



que o meu coração esteja sempre aberto às pequenas
aves que são os segredos da vida
o que quer que cantem é melhor do que conhecer
e se os homens não as ouvem estão velhos

que o meu pensamento caminhe pelo faminto
e destemido e sedento e servil
e mesmo que seja domingo que eu me engane
pois sempre que os homens têm razão não são jovens

e que eu não faça nada de útil
e te ame muito mais do que verdadeiramente
nunca houve ninguém tão louco que não conseguisse
chamar a si todo o céu com um sorriso


poema:
E. E. Cummings
fotografia:
Keith Saint

O Princípio da Oração



Senhor, enche o meu quarto
de alto mar.

poema: Filipa Leal
fotografia: Ellen Kooi

Pequeno esclarecimento



Os poetas não são azuis nem nada, como pensam alguns supersticiosos, nem sujeitos a ataques súbitos de levitação. O de que eles mais gostam é estar em silêncio - um silêncio que subjaz a quaisquer escapes motorísticos e declamatórios. Um silêncio... Este impoluível silêncio em que escrevo e em que tu me lês.

poema: Mário Quintana
fotografia: André Kertész

sábado, 17 de outubro de 2009

De Profundis


Faltam aos planos das cidades
esfinges aladas
palmas fora de tempo, matagais
pequenos acrescentos a vermelho

Faltam atlas com algum detalhe
para as emissões nocturnas
nos agudos da nossa incerteza
falta uma beleza
a olhar por nós
indiscernível, entreaberta ainda

Talvez a nós próprios falte
essa grande medida
insondáveis cordas na travessia
uma juventude que o mundo possa
documentar

os teus olhos são o que resta
dos livros sagrados
e da grande pintura perdida


poema: José Tolentino Mendonça
fotografia:
Lilya Corneli

Da música




A música derrama-se
no corpo terroso
da palavra. Inclina-se
no mundo em mutação
do poema.

A música traz na bagagem
a memória do sangue; o caminho
do sol: Lume e cume
de palavras polidas.

A música rompe um rio de lava
por si mesmo criado. Lágrima
endurecida
onde cabem o mar
e a morte.


poema: Casimiro de Brito
música: Antony and the Johnsons