domingo, 28 de fevereiro de 2010

Do livro verde


Todas as tardes
[depois de mastigar a sede]

dormíamos nos escombros
do livro verde

ou apanhávamos morangos
no pomar do peito

fotografia: *DaJe

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

A Minha Religião é o Novo



A minha Religião é o Novo.
Este dia, por exemplo; o pôr do Sol,
estas invenções habituais: o Mar.
Ainda:
os cisnes a Ralhar com a água. A Rapariga mais bonita que
ontem.
Deus como habitante único.
Todos somos estrangeiros a esta Região, cujo único habitante
verdadeiro é Deus (este bem podia ser o Rótulo do nosso
Frasco).
Dele também se podia dizer, como homenagem:
Hóspede discreto.
Ou mais pomposamente:
O Enorme Hóspede discreto.
Ou dizer ainda, para demorar Deus mais tempo nos lábios ou
neste caso no papel, na escrita, dizer ainda, no seu epitáfio que
nunca chega, que nunca será útil, dizer dele:
em todo o lado é hóspede,
e em todo o lado é Discreto.

poema: Gonçalo M. Tavares

fotografia: Inês d'Orey

O Amor é o Amor



O amor é o amor — e depois?!
Vamos ficar os dois
a imaginar, a imaginar?...

O meu peito contra o teu peito,
cortando o mar, cortando o ar.
Num leito
há todo o espaço para amar!

Na nossa carne estamos
sem destino, sem medo, sem pudor
e trocamos — somos um? somos dois?
espírito e calor!

O amor é o amor — e depois?

poema: Alexandre O'Neill

Deolinda [Clandestino]


Glen Hansard/Marketa Irglova - Falling Slowly


Quem me quiser



Quem me quiser há-de saber as conchas
a cantigas dos búzios e do mar.
Quem me quiser há-de saber as ondas
e a verde tentação de naufragar.

Quem me quiser há-de saber as fontes,
a laranjeira em flor, a cor do feno,
à saudade lilás que há nos poentes,
o cheiro de maçãs que há no inverno.

Quem me quiser há-de saber a chuva
que põe colares de pérolas nos ombros
há-de saber os beijos e as uvas
há-de saber as asas e os pombos.

Quem me quiser há-de saber os medos
que passam nos abismos infinitos
a nudez clamorosa dos meus dedos
o salmo penitente dos meus gritos.

Quem me quiser há-de saber a espuma
em que sou turbilhão, subitamente
- Ou então não saber a coisa nenhuma
e embalar-me ao peito, simplesmente.

poema: Rosa Lobato de Faria
fotografia: Graça Loureiro

Primeiro a tua mão



Primeiro a tua mão sobre o meu seio.
Depois o pé – o meu – sobre o teu pé.
Logo o roçar urgente do joelho
e o ventre mais à frente na maré.

É a onda do ombro que se instala
É a linha do dorso que se inscreve.
A mão agora impõe, já não embala
mas o beijo é carícia, de tão leve.

O corpo roda: quer mais pele, mais quente.
A boca exige: quer mais sal, mais morno.
Já não há gesto que se não invente,
ímpeto que não ache um abandono.

Então já a maré subiu de vez.
É todo o mar que inunda a nossa cama.
Afogados de amor e de nudez
Somos a maré alta de quem ama.

Por fim o sono calmo, que não é
senão ternura, intimidade, enleio:
o meu pé descansando no teu pé,
a tua mão dormindo no meu seio.

poema: Rosa Lobato de Faria
pintura: Hessam Abrishami

Todos os dias


Todos os dias
nascem pequeninas nuvens,
róseas umas,
aniladas outras,
nacaradas espumas...

Todos os dias
nascem rosas,
também róseas
ou cor de chá, de veludo...

Todos os dias
nascem violetas,
as eleitas
dos pobres corações...

Todos os dias
nascem risos, canções...

Todos os dias
os pássaros acordam
nos seus ninhos de lãs...

Todos os dias
nascem novos dias,
nascem novas manhãs...

poema: Saúl Dias
fotografia: DDiArte

Viver na Beira-Mar



Nunca o mar foi tão ávido
quanto a minha boca. Era eu
quem o bebia. Quando o mar
no horizonte desaparecia e a areia férvida
não tinha fim sob as passadas,
e o caos se harmonizava enfim
com a ordem, eu
havia convulsamente
e tão serena bebido o mar.

poema:
Fiama Hasse Pais Brandão
fotografia: Luís Pinto

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Pés no coração



Na memória da pedra os pés
as mãos alteadas
à profundidade das nuvens

o coração líquido
aquoso alento
respirável húmus

poema: João Manuel Ribeiro
pintura: Rafal Olbinski

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

A MULHER MAIS BELA DO MUNDO



Era uma vez uma menina que se chamava Olguita.
Olguita estava sentada à porta de uma casa, lavada em lágrimas. Ela chorava, chorava, chorava…
A dada altura, as pessoas que passavam pararam e perguntaram-lhe:
-“Porque choras, menina?”
Ela respondeu-lhes:
-“Porque perdi a minha mãe.”
E as pessoas da aldeia insistiram:
-“Mas como se chama a tua mãe?”
- “Chama-se mãe!”, respondeu-lhes.
- “Mas, onde é que ela vive? Onde é que tu vives?”, tornaram elas.
-“Eu vivo na minha casa!”.

Já ninguém sabia o que havia de fazer. Mas ainda assim, voltaram a perguntar-lhe:
-“Com quem se parece ela? Como é a sua cara? Podes descrever a tua mãe?

-“Oh! A minha mãe é a mulher mais bela do mundo”, disse a menina. Foi então que decidiram trazer todas as jovens mães da aldeia à presença de Olguita.
-“Não, esta não é a minha mãe. Não, esta também não é. E aquela também não!”
E recomeçou a chorar.

Subitamente, uma mulher de avental apareceu do outro lado da rua. Era uma mulher muito, muito gorda, de cara redonda e anafada, com uns olhos que brilhavam de alegria.
Logo que viu a filha, correu para junto dela e exclamou:
-“Minha filhinha, minha pequena Olguita!”
E a menina saltou para o colo da mulher, abraçou-a e, virando-se para as pessoas da aldeia, disse:
-“Vêem, esta é a minha mãe, a mulher mais bela do mundo!


texto: conto russo
ilustração: Sara Simões

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

O Principezinho




- Vocês são bonitas, mas vazias - insistiu o principezinho. - Não se pode morrer por vocês. Claro que, para um transeunte qualquer, a minha rosa é igual a vocês. Mas sozinha, é muito mais importante do que vocês todas juntas, porque foi ela que eu reguei. Porque foi ela que eu pus debaixo de uma redoma. Porque foi ela que eu abriguei com o biombo. Porque foi a ela que eu matei as lagartas (menos duas ou três, por causa das borboletas). Porque foi a ela que eu ouvi queixar-se, gabar-se e até, às vezes, calar-se. Porque ela é a minha rosa.

Depois voltou para o pé da raposa e despediu-se:
- Adeus...
- Adeus - despediu-se a raposa. - Agora vou-te contar o tal segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos...
- O essencial é invisível para os olhos - repetiu o principezinho, para nunca mais se esquecer.
- Foi o tempo que tu perdeste com a tua rosa que tornou a tua rosa tão importante.
- Foi o tempo que eu perdi com a minha rosa... - repetiu o principezinho, para nunca mais se esquecer.
- Os homens já não se lembram desta verdade - disse a raposa. - Mas tu não te deves esquecer dela. Ficas responsável para todo o sempre por aquilo que cativaste. Tu és responsável pela tua rosa...
- Eu sou responsável pela minha rosa... - repetiu o principezinho, para nunca mais se esquecer.

texto [excerto] e ilustração: Antoine de Saint-Exupéry

Guarda a manhã



Guarda a manhã
Tudo o mais se pode tresmalhar

Porque tu és o meio da manhã
O ponto mais alto da luz
Em explosão
poema: Daniel Faria
fotografia: José Paiva

Como te tens lembrado hoje de mim?


Nós, pobres mulheres, apesar do nosso imenso e frágil orgulho, não somos, afinal, mais do que argila que as mãos deles moldam a seu belo capricho. Feliz da argila que, no seu caminho, encontra, como eu, o estatuário que a vai moldando a acariciá-la! Gosto tanto de ti que me não revolto, eu, a eterna revoltada, aquela que teve sempre por coração um oceano imenso a que ninguém jamais descobrira o fundo. Como te tens lembrado hoje de mim? Com saudades? Com desejos de me beijar? Com tristeza? Como? Gostava tanto, tanto de saber a cor dos teus pensamentos quando são meus! Queria que eles fossem roxos, como os lilases, ou cor-de-rosa como os beijos que eu te dou. Tenho saudades, saudades, saudades. Reparei agora para uma coisa: é curioso como eu não sou capaz de vestir um vestido alegre quando tu não vens. Já segunda-feira vesti o vestido preto e hoje sem pensar fui vesti-lo outra vez. E é verdade que eu ando de luto, de luto por uns beijos que trago e que se não dão e que morrem de frio longe da tua boca; queres luto mais triste?

reflexão: Florbela Espanca
fotografia: José de Almeida

sábado, 20 de fevereiro de 2010



Na Casa Grande
todos são sempre meninos,
mesmo os velhos,
porque a idade não é
a soma dos cansaços e desilusões
mas o crescimento no modo de ser pessoa
e ser sempre criança.

Brinca-se todo o tempo,
mesmo quando se está sério e em silêncio.
Brincar é a forma feliz de se viver,
de se olhar e de se entender.

poema: João Manuel Ribeiro
iliustração: Mel Kadel

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Ah! Os relógios




Amigos, não consultem os relógios
quando um dia eu me for de vossas vidas
em seus fúteis problemas tão perdidas
que até parecem mais uns necrológios...

Porque o tempo é uma invenção da morte:
não o conhece a vida - a verdadeira -
em que basta um momento de poesia
para nos dar a eternidade inteira.

Inteira, sim, porque essa vida eterna
somente por si mesma é dividida:
não cabe, a cada qual, uma porção.

E os Anjos entreolham-se espantados
quando alguém - ao voltar a si da vida -
acaso lhes indaga que horas são...


poema: Mário Quintana
pintura: Dalí

Dizei lá: o que é o amor?



Corações juntos.................e unidos. Um ve
neno mais que doce. ............Dor que faz bem aos
sentidos. Seta que acerta........e adormece. Obra que
ao mundo traz gente. Moço fogoso e atrevido. Um
jogo que afinal mente. Chama de braseiro de Cupi
do. Fardo leve de levar. Menino amável galan
te. Tristeza que dá prazer. Corda que prende o
amante. Ser cego, sombrio, sinistro. Noite
de gozo e grandeza. Livro já lido e revis
to. Fausto de fugaz beleza. Feira de
comprar remorsos. Desrazão in
teligente. Estrada de muitos
cansaços. Fogo que
arde eterna
mente.

poema: Georg Philip Handsdörffer

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Naquele dia... [Walt Disney]


Passeámos a noite inteira entre sândalos



Passeámos a noite inteira entre sândalos disseste-me
que eram sândalos e eu acreditei toda a noite
que passeámos entre sândalos naquela noite de março
na noite em que passeámos sem nos olharmos
num bosque de sândalos num mar de sargaços
disse-te eu imerso na noite em que não acreditava
quando acordaste e eu acordei a teu lado
sem noite sem sândalos sem mar em que acreditar
apenas a justa medida de um olhar no lado sombrio
do teu corpo desperto que sonhou no tom adequado
sobre um chão de terra virgem acabado de semear.

poema: Carlos Alberto Machado
fotografia: Jorge Garcia

dádiva matinal


Um beijo
e estas palavras
ao teu ouvido
na tua boca
possa este peso imposto
ser-te leve

poema: Bruno Wheinhals
fotografia: MARIAH

Clã - Problema de Expressão


sábado, 13 de fevereiro de 2010




Amo-te como buganvílias caídas ao redor

das casas ou o luar branco dos caminhos,

ou a substância audível da tua respiração.


poema: José Rui Teixeira

fotografia: José D'Almeida & Maria Flores



Apercebi-me mais tarde de um campo magnético ao redor


da ideia de casa. Imaginei que gravitávamos em órbitas


definidas pela proximidade dos corpos e dos afectos. Éramos,


no entendimento que eu tinha das coisas, representações


coloridas e tridimensionais no interior da casa, como se o fogo


mantivesse os predadores à distância informulada da luz.


fotografia: Inês d'Orey

Mafalda Veiga - Imortais



Por mais que a vida nos agarre assim
Nos troque planos sem sequer pedir
Sem perguntar a que é que tem direito
Sem lhe importar o que nos faz sentir

Eu sei que ainda somos imortais
Se nos olhamos tão fundo de frente
Se o meu caminho for por onde vais
A encher de luz os meus lugares ausentes

É que eu quero-te tanto
Não saberia não te ter
É que eu quero-te tanto
É sempre mais do que te sei dizer
Mil vezes mais do que eu te sei dizer

Por mais que a vida nos agarre assim
Nos dê em troca do que nos roubou
Às vezes fogo e mar, loucura e chão
Às vezes só a cinza que sobrou

Eu sei que ainda somos muito mais
Se nos olhamos tão fundo de frente
Se a minha vida for por onde vais
A encher de luz os meus lugares ausentes

É que eu quero-te tanto
Não saberia não te ter
É que eu quero-te tanto
É sempre mais do que te sei dizer
Mil vezes mais do que eu te sei dizer

letra e música: Mafalda Veiga

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Para encontrar o golpe no sono


2

Acordei também com os pássaros
E estudei a posição em que os bordava
Nos seus vestidos
E disse: para que lhes espetas agulhas no coração
E ela respondeu: para que aprendam a direcção do voo

poema: Daniel Faria

ilustração: Isabelle Arsenault

Kings of Convenience - Parrallel Lines


quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

ELOGIO DA MULHER



O coração da mulher é alto


Mas nem só por isso a mulher oscila


Ela é como o navio mercante


Que chega carregado de grão


A mulher é o tear dentro da vida


Nem só por isso a mulher é mais que a vida


Ela é como o navio mercante


Que chega carregado de grão


poema: Daniel Faria

fotografia: Lylia Corneli

Coração Habitado



Aqui estão as mãos.
São os mais belos sinais da terra.
Os anjos nascem aqui:
frescos, matinais, quase de orvalho,
de coração alegre e povoado.

Ponho nelas a minha boca,
respiro o sangue, o seu rumor branco,
aqueço-as por dentro, abandonadas
nas minhas, as pequenas mãos do mundo.

Alguns pensam que são as mãos de deus
— eu sei que são as mãos de um homem,
trémulas barcaças onde a água,
a tristeza e as quatro estações
penetram, indiferentemente.

Não lhes toquem: são amor e bondade.
Mais ainda: cheiram a madressilva.
São o primeiro homem, a primeira mulher.
E amanhece.

poema: Eugénio de Andrade
pintura: Isabel Lhano

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

A vida nos bosques



A luz que ofusca os nossos olhos é escuridão para nós. Só amanhece o dia para o qual estamos acordados. Mais dia está por raiar. O sol não passa de uma estrela matutina.

texto [excerto]: Henry David Thoreau
fotografia: Daniel Camacho

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Casa



Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.

Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.

Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão. . .

Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que sem voz me sai do coração.
poema: David Mourão Ferreira
fotografia: DDiArte

Venus Hum - Hummingbirds


domingo, 7 de fevereiro de 2010




eia, daqui vê-se o teu rosto. mesmo daqui, a
partir de mundos de distância, vê-se o teu
rosto habituado às pupilas dos meus olhos.
estás cá dentro, tu estás cá dentro

poema: valter hugo mãe
ilustração: Mel Kadel