cala-me a voz
ou a desata.
grito ou silêncio absoluto,
poema ou circunstância,
o azulnegro da noite bate no meu peito.
poema: silvia chueire

Mãe!
Vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que ainda não viajei.
Traze tinta encarnada para escrever estas coisas! Tinta cor de sangue, sangue! verdadeiro, encarnado!
Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra senão de viagens!
Quando voltar é para subir os degraus da tua casa, um por um. Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa. Depois venho sentar-me a teu lado. Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei, tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras.
Mãe! ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito apertado! Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa. Como a mesa. Eu também quero ter um feitio, um feitio que sirva exactamente para a nossa casa, como a mesa.
Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Quando passas a tua mão pela minha cabeça é tudo tão verdade!
poema: Almada Negreiros
pintura. Klimt

Quando descias à noite escura do meu colo recuperavas a tua claridade, a tua liberdade e segurança. Tal como naquela gruta marinha da nossa ilha, dizias: mergulha-se nas trevas para se encontrar numa maravilhosa luz azul.
literatura: Claudio Magris
fotografia: Inês d'Orey

Se me pedisses de repente e aqui:
Palitinho amava Fosforina

Creio que foi o sorriso,
sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso.
poema: Eugénio de Andrade
fotografia: stadiumlove
Acredito que se um homem vivesse a sua vida plenamente, desse forma a cada sentimento, expressão a cada pensamento, realidade a cada sonho, acredito que o mundo beneficiaria de um novo impulso de energia tão intenso que esqueceríamos todas as doenças da época medieval e regressaríamos ao ideal helénico, possivelmente até a algo mais depurado e mais rico do que o ideal helénico. Mas o mais corajoso homem entre nós tem medo de si próprio. A mutilação do selvagem sobrevive tragicamente na auto-negação que nos corrompe a vida. Somos castigados pelas nossas renúncias. Cada impulso que tentamos estrangular germina no cérebro e envenena-nos. O corpo peca uma vez, e acaba com o pecado, porque a acção é um modo de expurgação. Nada mais permanece do que a lembrança de um prazer, ou o luxo de um remorso. A única maneira de nos livrarmos de uma tentação é cedermos-lhe. Se lhe resistirmos, a nossa alma adoece com o anseio das coisas que se proibiu, com o desejo daquilo que as suas monstruosas leis tornaram monstruoso e ilegal. Já se disse que os grandes acontecimentos do mundo ocorrem no cérebro. É também no cérebro, e apenas neste, que ocorrem os grandes pecados do mundo.


estás tão bonita hoje. quando digo que nasceram

Quando tuas mãos, amor,
procuram as minhas,
que me trazem em seu voo?
Por que se detiveram
na minha boca, de súbito,
por que é que as reconheço
como se já antes
as tivesse tocado,
como se antes de existir
tivessem percorrido
a minha fronte, a cintura?
A sua suavidade
voava sobre o tempo,
sobre o mar, sobre o fumo,
sobre a primavera,
e quando puseste
as mãos no meu peito,
reconheci essas asas
de pomba dourada,
reconheci essa greda
e essa cor de trigo.
Passei os anos
da minha vida a procurá-las.
Subi as escadas,
atravessei os recifes,
levaram-me os comboios,
as águas me trouxeram,
e na pele das uvas
imaginei tocar-te.
De repente a madeira
trouxe-me o teu contacto,
as amêndoas anunciavam-me
tua secreta doçura,
até que as tuas mãos
em meu peito se fecharam
e ali como duas asas
terminaram a viagem.






Sem Ti